quinta-feira, 6 de agosto de 2009

REDISCUSSÃO DA DENÚNCIA ESPONTÂNEA NO PARCELAMENTO DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS

AUTORA: Cristina Zanello

Equívocos ocorrem na interpretação das normas jurídicas, quando a análise do texto legal desconsidera os fundamentos dos institutos que envolvem uma suposta antinomia. É o que tem ocorrido com a aplicação da denúncia espontânea nas hipóteses de parcelamento de débitos tributários.

O Fisco e o Poder Judiciário possuem entendimento assente quanto à não aplicação da denúncia espontânea no parcelamento de débitos tributários sob os seguintes argumentos:

a) que o parcelamento não consiste em pagamento de tributos;

b) que o Código Tributário Nacional estaria estabelecendo que a denúncia espontânea, que compreende a exclusão da multa, só ocorreria com o pagamento integral do tributo devido; e

c) que o § 1o, do Art. 155-A do CTN não estaria admitindo a exclusão de multa e juros no parcelamento de débitos tributários sendo, portanto, vedada a denúncia espontânea neste caso.

No entanto, falta consistência jurídica aos argumentos acima expostos pelos seguintes motivos:

1) O parcelamento é um instituto de direito privado definido nos Arts. 314 e 319 do Código Civil, como forma de pagamento, conforme se depreende dos seus termos:
Art. 314. Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, não pode o credor ser obrigado a receber, nem o devedor a pagar, por partes, se assim não se ajustou.

Esse dispositivo estabelece que o pagamento parcelado é liberalidade do credor e não um direito do devedor.
Art. 319. O devedor que paga tem direito a quitação regular, e pode reter o pagamento, enquanto não lhe seja dada.

Então, o devedor que realiza o pagamento em parcelas tem o direito de reter o pagamento enquanto o credor não lhe der a quitação da parcela antecedente.
De conseguinte, conclui-se que o pagamento pode ser parcelado, se assim for ajustado com o credor; neste caso, o efeito de extinção da obrigação só ocorrerá com o pagamento da última parcela, constituindo assim o pagamento total do débito.
Nessa linha, Silvio de Salvo Venosa ensina: “Só existirá solução da dívida com a entrega do objeto da prestação. Se a prestação é complexa, constante de vários itens não se cumprirá a obrigação enquanto não atendidos todos.” Desse modo, sendo o cumprimento da obrigação, no pagamento complexo ou diferido, a obrigação apenas se extinguirá com o cumprimento de todos os itens ou de todas as parcelas.
Logo, não há fundamento na confusão entre quitação da obrigação com o pagamento do débito. Pagamento é o ato de cumprimento da obrigação que pode ser integral à vista ou diferida, em parcelas.
Ademais, o parcelamento como regime de pagamento conforme estabelece o Código Civil, é conceito que deve ser respeitado pelo direito tributário por força do Art. 110 do Código Tributário Nacional:
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.

Neste contexto, traz-se à colação os argumentos de Aurora Tomazini de Carvalho quanto ao conceito de parcelamento de débitos tributários:
[...] parcelamento é uma forma para se efetuar o pagamento de um tributo, é um procedimento para a realização do pagamento. Em algumas oportunidades o Estado cria leis, dando oportunidade aos contribuintes, que se subsumirem a determinadas condições, de efetuar o pagamento de seus créditos de forma parcelada. Nestes casos o parcelamento é visto como uma norma geral e abstrata que prescreve um procedimento para o pagamento do tributo devido (grifado).

Portanto, o parcelamento de débitos tributários é um regime de pagamento sendo possível a admissão da denúncia espontânea porque o Código Tributário Nacional não exige que haja a quitação do débito para a sua concessão.
2) No Art. 138 do Código Tributário Nacional não está evidenciado que a exclusão da multa ocorre exclusivamente com o pagamento integral do tributo devido, pois exige para a referida exclusão, apenas o pagamento do tributo e não o seu pagamento integral, como se observa nos seus termos abaixo transcritos:
Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia espontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, quando o montante do tributo dependa de apuração.
Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia apresentada após o início de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização, relacionados com a infração.
O dispositivo legal fala do pagamento do tributo devido ou do depósito da importância arbitrada pela autoridade administrativa, o que não evidencia a exigência de pagamento integral, mas se faz necessário que haja iniciativa do devedor para o início do pagamento, ainda que seja parcelado, antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de fiscalização.
Esta conclusão se extrai do fato de o Código Tributário Nacional utilizar a expressão pagamento para identificar o ato de entregar, de dar o valor do tributo e por vezes utilizar a expressão pagamento no sentido de quitação, ou seja, pagamento integral.
Quando o sentido é de quitação a expressão pagamento vem acompanhada da palavra integral conforme demonstrado abaixo:

Art. 158. O pagamento de um crédito não importa em presunção de pagamento:
I - quando parcial, das prestações em que se decomponha;
II- quando total, de outros créditos referentes ao mesmo ou a outros tributos. (grifado)

A expressão pagamento total ou integral está sempre ligada à extinção do crédito tributário, porque tão-somente o pagamento o sentido de quitação extingue o crédito tributário como confirmado pelo Art. 156, I do CTN.
No caput do Art. 158 a expressão pagamento aparece por duas vezes, sendo que a primeira menção refere-se ao ato de pagar, de entregar ao credor/Fisco e a segunda menção refere-se à quitação.
Nos incisos desse dispositivo está evidenciado que o pagamento pode ser parcelado ou integral.
3) quanto ao argumento de que o § 1o, do Art. 155-A do CTN não admitiria a exclusão de multa e juros nos casos de parcelamento de débitos tributários e, portanto, seria vedada a denúncia espontânea, também não deve prevalecer.
Na verdade tal interpretação implica, em princípio, na antinomia entre o Art. 138 do Código Tributário Nacional que exclui a responsabilidade do devedor e consequentemente a aplicação da multa nos casos em que este realiza o pagamento do tributo devido, antes de qualquer iniciativa da autoridade fazendária e o Art. 155-A que veda a exclusão de juros e multa, salvo disposição legal em contrário.
Art. 155-A. O parcelamento será concedido na forma e condição estabelecidas em lei específica.
§ 1o Salvo disposição de lei em contrário não exclui juros e multas.
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A aparente antinomia que possa haver entre o § 1º, do Art. 155-A e o Art. 138 e seu § 1º, ambos do CTN é resolvida pela aplicação do princípio da especialidade, segundo Maria Helena Diniz (2003, p. 33) :
[...] O de especialidade (lex specialis derogat legi generali), que visa a consideração da matéria normada, com o recurso aos meios interpretativos. Entre a lex specialis e a lex generalis há um quid specie ou uma gens au speci. Uma norma é especial se possuir em sua definição legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes.

A regra geral é o pagamento em atraso e a cobrança dos encargos punitivos. Assim o parcelamento é forma de pagamento que ocorre quando o devedor está em mora porque sobre o valor incidirá os juros e a multa (encargo punitivo), expresso no Art. 155-A, § 1º do CTN. A regra do Art. 138 do CTN, denúncia espontânea é mais específica porque fala da hipótese de exclusão da multa no caso de o devedor procurar o Fisco para cumprir a obrigação tributária, antes dos atos de fiscalização e cobrança pelo Estado. O elemento especializante é o pagamento fora do prazo e a regra geral é a incidência de multa. A regra específica é a hipótese da exclusão da multa.
Como a regra geral do art. 155-A, § 1º, do CTN, surgiu depois da regra específica do Art. 138 e § 1º, do CTN, tem sido interpretada como uma antinomia de segundo grau entre o critério cronológicio (norma editada posteriormente) e o critério da especialidade. Ad argumentandum, por este raciocínio o conflito se resolveria com a aplicação do princípio da especialidade que prevalece sobre o critério cronológico, conforme afirma Maria Helena Diniz:
Em caso de antinomia entre o critério de especialidade e o cronológico, valeria o meta critério lex posterior generalis non derogat priori speciali, segundo o qual a regra de especialidade prevaleceria sobre a cronológica.
Para Bobbio, a superioridade da norma especial sobre a geral constitui expressão da exigência de um caminho da justiça, da legalidade à igualdade, por refletir, de modo claro, a passagem da lei geral à exceção como uma passagem da legalidade abstrata à equidade (DINIZ, 2003, p. 40 - 41).

No caso de subsistir a interpretação de que estaria ocorrendo um conflito entre as duas regras, a solução também existe pelo argumento do princípio da especialidade, prevalecendo o reconhecimento da denúncia espontânea para os casos de parcelamento de débitos tributários.
Contudo, por outro enfoque, não há qualquer conflito entre as duas regras do CTN em questão, porque o Art. 155-A foi inserida para trazer expressamente a definição do parcelamento de débitos tributários que antes era confundida com uma espécie de moratória, sendo que em seu § 1º estabelece que poderá sim haver exclusão da multa caso haja disposição legal em contrário, o que admite no caso específico da iniciativa do devedor anterior ao do Fisco a aplicação da denúncia espontânea conforme o Art. 138 e § 1º, do CTN.
Finalmente, corrobora com os argumentos acima a observação dos fundamentos da denúncia espontânea e do parcelamento de débitos tributários. A denúncia espontânea tem por fundamento a compensação das despesas que o Estado teria com a cobrança administrativa e judicial do débito tributário, excluindo a multa do valor do principal com a iniciativa do devedor em realizar o pagamento anteriormente à atividade do Fisco. Este objetivo pode ser cumprido com o pagamento em uma quota ou em parcelas. Caso o devedor incorra em inadimplência do parcelamento o valor do débito voltará ao estado quo ante, incluindo a multa antes excluída no valor do débito a ser cobrado pela Fazenda.
É necessário lembrar que quando o devedor está em dificuldades financeiras busca o parcelamento de débitos tributários em razão da redução de sua capacidade econômica. Sobre estes efeitos, Betina Grupenmacher e Sandra Barbon Lewis afirmam:
[...] empresas que nunca deixaram de recolher tributos devidos e que sempre mantiveram perante o fisco uma postura acima de qualquer crítica, chegam à situação de tamanha dificuldade financeira que efetuar o pagamento de tributos, em alguns momentos, torna-se absolutamente inviável.

As autoras ao defenderem a aplicação da denúncia espontânea no parcelamento de débitos tributários, afirmam que as empresas que procuram regularizar sua situação perante o fisco confessando, inclusive, seus débitos fiscais, recebem o mesmo tratamento que aquelas que permanecem na ilegalidade sem a intenção buscar a regularização.
Diante do exposto conclui-se que o parcelamento de débitos tributários é um regime de pagamento que possibilita a arrecadação do Estado em momentos de crise do sujeito passivo, não havendo qualquer contradição com a aplicação da denúncia espontânea com o pagamento da primeira parcela.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Aurora Tomazini. Crimes Contra a Ordem Tributária: A necessidade de Esgotamento da Esfera Administrativa para a Propositura da Ação Penal; os Efeitos do Parcelamento do Crédito Tributário sobre a Punibilidade Penal. In DI SANTI, Eurico Marcos Diniz de (coord.). Segurança Jurídica na Tributação e Estado de Direito. II Congresso Naciontla de Estudos Tributários. São Paulo: Noeses, 2005, p. 29.

DINIZ, Maria Helena. Conflito de Normas. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 33 – 41.

GRUPENMACHER, Betina Treiger; LEWIS, Sandra Barbon. Exclusão da Multa em Parcelamento de Débito Fiscal. In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2000, nº 56, p. 25.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005, v. 2, p. 205 - 297.

ZANELLO, Cristina. Normas Arrecadadoras Tributárias como Instrumento de Intervenção no Domínio Econômico. Revista Tributaria e de Finanças Públicas, v. 80, p. 78-93, 2008.

Sobre o texto:
Texto inserido na Associação Paulista de Estudos Tributários em 28 de Julho de 2009.

Bibliografia:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), o texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma :ZANELLO, Cristina.Rediscussão da Denúncia Espontânea no Parcelamento de Débitos Tributários.
Acesso em :6 de agosto de 2009
Autor:
Cristina Zanello
Advogada, mestre em Direito Negocial, bacharel em Economia, membro do Instituto de Direito Tributário de Curitiba, professora universitária.